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Lilian Gassen

328.954,32

Exposições Individuais

UMA VISTA DAQUI PARA LÁ

 

Dispostas no espaço expositivo, penduradas na parede como qualquer pintura, elas nos fazem caminhar. Engraçado como nos tomam no repouso e nos incitam ao movimento. E se já nos tomam em trânsito, bem, elas nos embalam ainda mais. Em vez da posição estanque, reclamam pelo desequilíbrio. Não nos pedem os dois pés no chão, mas sempre o andar; este intervalo todo nosso, quando não estamos nem lá nem cá; quando ficamos em um só pé, enquanto o outro se lança a frente, no ar, na falta, à procura do chão próximo. Indo de um lado para outro, nos arredores do trabalho, passando do detalhe para o geral constantemente. Essas pinturas de algum modo pedem isso. O movimento do olho incita o movimento do corpo pelo espaço. E o que procuramos incessantemente é a melhor vista, um ponto qualquer para repousar o corpo e olhar com alguma tranquilidade. Por isso são muitas distâncias. Muitos lugares de onde nós podemos inquirir os trabalhos de Lilian Gassen.

Podemos olhar de um lugar mais afastado. Um lugar que é quase sempre mais longe do que se imagina. Um lugar de onde a imagem se entrega e deixa ver seus movimentos. E geralmente é dessa distância que avistamos as pinturas de Lilian Gassen pela primeira vez. Uma distância tal que a pintura conserva algo da imanência de um movimento; onde as revoluções e dobras da pintura parecem crescer sempre um tanto mais; sem tomar nada de lugar nenhum, mas com suas próprias partes, com quantidades do seu próprio corpo; como se viessem de algum lugar do fundo, e subissem até o ponto mais alto, se estendendo ao máximo, até estourar e cair em si mesmas. Dessa distância a pintura tem mesmo uma unidade e uma força na juntura de todas as linhas, nos seus movimentos. E muito embora sejam as linhas que estruturam toda a pintura, quando vistas de longe elas não se pronunciam tanto, não dividem o plano. Em vez disso confluem sempre para uma imagem uma, para um todo.

Enquanto estamos ali neste lugar, vemos as formas que se acham e se perdem; e vão fazendo profundidades e platitudes, dividindo a superfície da pintura entre espaços e planos. É neste instante e dessa distância mais alargada que vemos a imagem com mais clareza.  Uma imagem que nos chama para perto e nos convida, como se fosse possível adentrar nos seus espaços e para além do plano. Mas quando nos aproximamos muito disso se perde. Quando damos dois ou três passos à frente, a pintura se revela outra, ou ainda, dá-se de outro modo, como se estivéssemos conhecendo aos poucos as suas dimensões. Muda-se a distância e em vez da unidade da imagem, de movimentos suspensos, revoluções ensimesmadas e espaços alhures, encontramos um plano dividido; um plano partilhado por cores e linhas. Dessa distância mais próxima, mas ainda não imediata, mostra-se o jogo do desenho e da cor. Nesse jogo, cor e linha estão imbricadas de tal modo que são vistas como duas coisas em uma coisa só.

Cada pintura começa com uma única linha. A partir dela a artista desenha e preenche as linhas seguintes. Linhas que se fecham em formas ou que atravessam a pintura.  Linhas que contornam e outras que falham em delimitar. Linhas que de um lado da pintura definem uma forma, enquanto do outro se perdem no meio de tantas outras. Algumas inquietas e outras mais suaves; sinuosas ou com cantos. Toda a superfície do quadro é partilhada entre linhas que são cores, e cores que são linhas, mais ou menos desse modo. Uma cor depois da outra ou uma linha contornando outra linha.  É nesse fazer que Lilian Gassen encontra cada uma das suas pinturas. Mas a artista não segue qualquer esquema simples ou econômico.   As linhas e cores não ocupam o espaço da maneira mais fácil, uniformemente. Não são simplesmente linhas que se ajeitam da melhor maneira nos espaços que lhe cabem. Pelo contrário, elas têm especialidades e afetos diversos. Cada linha tem um desenho que lhe é próprio: às vezes aparecem meio duras, com movimentos mais contidos e quebras bruscas; em outros momentos são interrompidas ou parecem interromper outras linhas. No seu traçado elas se dobram e variam de espessura, indo de linhas estreitas que quando ladeadas se agrupam, como que criando uma superfície; até linhas mais largas, faixas que se separam e se abrem em uma série de cores em contraste.

Todas as situações no âmbito do plano pictórico são definidas pela variação de cor, espessura e formato das linhas, dentro do contexto que elas mesmas ensejam. Mas em vez de uma pintura de faixas, de linhas, ou de cores, há propriamente uma complexa malha de relações envolvendo cada uma destas partes. Daí surge uma superfície de impermanências que entrega ao olhar uma pintura incômoda. Há uma dinâmica de tensões sucessivas na imagem. Pontos de atenção disputam o olhar do observador a todo instante e tornam impossível ver o trabalho como uma unidade.  Dessa distância não vemos mais o trabalho por completo em uma só mirada. Não há como olhar para pintura de Lilian Gassen sem ter a sensação de que estamos vendo do local errado. É como se não houvesse um lugar tranquilo de onde poderíamos vê-las na sua inteireza. Os trabalhos põem nosso olhar sempre em movimento e qualquer posicionamento estanque em dúvida. Assim essas pinturas retiram o firme chão debaixo dos nossos pés. Não há diante delas um ponto correto, um lugar de onde se deve olhar. É como se este lugar estivesse sempre em falta. E é por essa falta que as pinturas exigem o movimento; elas demandam essa incessante procura pelo belvedere, pelo mirante.

Na medida em se caminha, mesmo sem ganhar qualquer distância, percebemos que é possível olhar para essas pinturas de muitos lugares e ângulos. Nota-se enfim que não estamos apenas diante de uma imagem, mas de uma coisa com múltiplos pontos de vistas, cuja textura e as laterais competem junto como o plano frontal para proporcionar uma experiência do ver. Uma única vista do trabalho, seja ela frontal ou oblíqua, já não é suficiente. Sempre fica viva a sensação de que, enquanto vemos de um lado, outra parte se oculta. Um pouco por isso, a imagem que antes nos chamava como se fosse nos confessar algo, nos contar como é possível, já não nos chama mais e parece que já não tem mais nada para confessar.

Tenho a impressão que essa imagem possível à distância, se perde, torna-se inabordável. E em vez disso, é dado a ver um objeto que antes de criar espaços dentro dos seus limites, reivindica para si o espaço real, ocupando não somente uma porção da parede, mas um território todo nas suas cercanias. A partir dali, não é mais a pintura que nos chama.  Somos nós que queremos conversar com ela. Queremos mesmo perguntar por que é tão incerta, e por que nosso olhar parece um estrangeiro diante da sua miragem. Por que o trabalho não se entrega de imediato e por que não há um lugar em que o trabalho se deixe ver por completo. Com essas dúvidas vamos até a pintura, andamos até ela para inquirir, investigar, perguntar. Esperamos encontrar algo firme, algo que balize nossa experiência, algo para ancorar o nosso olhar.

Então chegamos bem próximo, o mais próximo possível do trabalho. Ganhamos o território que ainda resta entre nosso corpo e a pintura. Mudamos a distância para tentar ver diferente. Desse ponto próximo a imagem se afasta completamente, sem proporcionar prazer algum pelo logro desfeito, sem desvelar nenhum engano. Tudo que nos resta ver deste lugar próximo é um muro. Uma parede feita de pintura e posicionada deliberadamente entre dois: entre nós e o quadro. Imagem e profundidade se perdem para dar lugar à uma deposição de tinta de espessura quase sempre uniforme sobre a tela. As cores ganham concretude e cada uma torna-se um corpo, que, como não pode ocupar o mesmo espaço de outro, se acomoda ao lado, nos intervalos. Assim as cores postas lado a lado ficam parecendo coisas ajeitadas sobre uma mesa ou dentro de uma caixa. Ficam parecendo peças únicas, como se fossem peças rígidas de um jogo de montar; como se fizessem parte de um quebra-cabeça. Cada uma delas tem um único lugar no qual cabe, onde se encaixa perfeitamente.

Dessa distância, agora bem próxima, o que se observa é uma ocupação da área do quadro por uma massa pictórica quase que independente do plano e dos seus limites.  As pinturas não são contidas nem encerradas pelos limites do plano.  Não é o plano de representação o que contém a sua imagem. Se as laterais, a textura e plano frontal competem para formar a imagem do trabalho, é por que cada pintura é construída por porções de matéria depositadas sobre a tela, no seu plano frontal e nas suas laterais. A pintura revela-se quase como uma coisa descolada do quadro, que se ainda funciona como o anteparo, é simplesmente por que dá à pintura um espaço a ser ocupado. E essa materialidade, que parece agarrar-se ao quadro, é como um corpo que dá a ver uma imagem. Desse modo, os trabalhos de Lilian Gassen restituem à imagem um corpo que é todo seu.

Daqui para lá, ou de lá para cá; entre a imagem, que nos chama para perto, que nos convida, nos seduz com suas cores, e um corpo, que nos afasta com a materialidade áspera da tinta, que nos manda embora pedindo mais distância; entre o corpo concreto encontrado nas proximidades e a imagem vista à distância, a pintura deixa aberto um espaço de experimentação e exercício do olhar. Aí fica o espaço pelo qual o observador se desloca, onde a imagem se faz corpo e onde o corpo pictórico se desfaz em imagem. Assim a pintura de Lilian Gassen abre o exercício do ver em toda a sua complexidade; porque sua pintura é tanto imagem, movimentos em suspensão e instante de imanências, quanto um corpo com o qual se compartilha o espaço real. Por isso pede um olhar outro, pouco usual ou familiar. A princípio, é verdade, não se sabe exatamente como olhar. Sabemos que sua pintura nos suscita olhar de muitos jeitos diferentes. E sabemos sim que o exercício não é somente aquele de quem para e olha uma única vez, como se tudo que houvesse para ver estivesse dado, disponível em plano frontal e em um único instante.

No entanto, encontrar um único ponto para ver os seus trabalhos pode ser extremamente difícil, pois, isto significa encontrar o momento de cruzamento entre o olhar que vê a imagem e o outro que olha a escultura. Significa encontrar um meio entre essas suas economias, entre estes dois modos de ver. Esse meio só pode ser encontrado diante de cada um dos seus trabalhos. Do olhar inerte à uma multiplicidade de pontos de vista, dos pontos de atenção sucessivos, do muro, da imagem e do incerto. É neste exercício de alteridade junto ao observador que seus trabalhos acontecem e constroem sentidos. Desse jeito, me parece, Lilian Gassen tenta encontrar um ponto onde o ato de ver ainda conserva a sua importância; onde esta experiência ainda é válida e transformadora. Tarefa que parece cada vez mais difícil, enquanto as imagens nos acompanham cada vez mais e são consumidas na mesma velocidade em que são produzidas. Mas essa tarefa ela divide comigo e com você.  Sua pintura, antes de um tratado do olhar, é um dispositivo do olhar. O que importa é que sua pintura é uma oportunidade para ver. Seu afeto maior, sua tentativa mais ousada é procurar nos fazer ver.

 

 

Bruno Oliveira